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segunda-feira, 2 de julho de 2012

FESTIVAL DE FÉRIAS - AS HORAS

Existem produções que participam do Oscar e que marcam mesmo sem ter arrebatado os votantes da Academia de Cinema. Detentor apenas do prêmio de Melhor Atriz, dado à Nicole Kidman, o filme As Horas (2002) é uma das grandes atrações que ao longo da história participaram desta festa, mas que acabaram não recebendo o devido valor. Tudo bem, o páreo na época era duro, mas o fato de até o roteiro ter sido ignorado é um fato inexplicável. Baseado na obra homônima do escritor Michael Cunningham, a história adaptada por David Hare e dirigida por Stephen Daldry, de Billy Elliot, felizmente foi reconhecida em outras premiações. Desenvolvido em três épocas distintas, mas ainda assim mantendo elementos entre si que permitem narrativas paralelas e fragmentadas, o longa é poesia pura não só em seus diálogos, mas também em suas belíssimas cenas.

Basicamente o roteiro fala de forma introspectiva sobre a doação da mulher ao homem, a respeito da sua anulação como pessoa e como ela lida com seus rompantes de desejos. A rotina de um só dia de três mulheres separadas por algumas décadas é narrada tendo como ponto de ligação o romance “Mrs. Dalloway”. Na década de 1920, a escritora Virginia Woolf (Nicole Kidman) está escrevendo a obra ao mesmo tempo em que lida com as limitações impostas por sua esquizofrenia e pelo excesso de zelo do marido Leonard (Stephen Dillane). Nos anos 50, Laura Brown (Julianne Moore) é uma dona-de-casa infeliz que está lendo o livro ao mesmo tempo em que prepara um bolo de aniversário para o marido Dan (John C. Reilly). A leitura poderá mudar seus pensamentos e ações de forma drástica. Por fim, em 2001 Clarissa Vaughan (Meryl Streep) está as voltas com os preparativos de uma festa em homenagem ao seu ex-amante e poeta Richard Brown(Ed Harris), que está a beira da morte. Ela praticamente está vivendo as mesmas ações que a protagonista do quase centenário livro. As três personagens principais vivem uma dor existencial, cada uma praticamente não dedicou o tempo que queria a si mesma para atender as vontades de um homem ou de outras pessoas e neste dia retratado estão confrontando os fantasmas que as assombram.


O desempenho das atrizes acabou rendendo um inesperado prêmio triplo no Festival de Berlim, decisão muito justa, mas há ressalvas. Todas elas se esforçaram e certamente fizeram o melhor que podiam, mas o roteiro poderia ser mais generoso com duas delas. Nicole foi super premiada despojando-se da vaidade e aceitando usar uma prótese de nariz que a deixava com um aspecto mais cabisbaixo para combinar com a personalidade da personagem que está triste com a vida que leva em um subúrbio londrino. Apesar da doença, cujo tratamento ela repudia, sua vontade de viver renasce com a visita da irmã, a artista plástica Vanessa Bell (Miranda Richardson). A trama da escritora é interessante, mas não é aprofundada como muitos esperavam, porém, é preciso ressaltar que o intuito da obra não era fazer uma biografia de Virginia e sim traçar um interessante paralelo entre os sentimentos dela e os de outras duas mulheres em espaços de tempos diferenciados. Meryl tem uma personagem que alterna bons e maus momentos e que sem dúvida só cresce se apegando ao papel de Harris. Ela trava interessantes diálogos com um antigo amor, Louis Waters (Jeff Daniels), mas não há sintonia com sua filha Julia (Claire Danes) e com a companheira Sally (Allison Janney). Mesmo assim, o roteiro ainda merece aplausos pela delicadeza que consegue interligar as tramas e proporcionar cenas marcantes e com fortes cargas dramáticas, mesmo quando não há diálogos. Aliás, esta é uma obra para ser apreciada com muita atenção, pois são nos gestos e olhares que se concentram a força do enredo.
Se Nicole e Meryl fazem trabalhos corretos, mas longe de serem avassaladores, quem segura a atenção mesmo é Julianne com o entrecho mais interessante e emotivo de todo o longa. Vivendo um casamento que não é o de seus sonhos, a personagem Laura é a que transmite melhor através de suas expressões toda a inquietação que está sentindo, seja na frente do filho, do marido ou ao ler algumas páginas do tal livro. Não são apenas as passagens da publicação que mexem com ela, mas também a vizinha Kitty (Toni Collete) que nunca pôde construir a vida que sonhou devido a um problema no útero. Quando revela que está doente, inesperadamente ela recebe um beijo na boca de Laura, mais uma manifestação das vontades dessa respeitável mãe de família, uma cena totalmente crível e nada vulgar. O lesbianismo é outro ponto em comum entre as três narrativas. Virginia também impulsivamente beija a irmã enquanto Clarissa é homossexual assumida e convive bem com seus antigos namorados que também revelam gostar do mesmo sexo. Nas mãos de um diretor insensível, tal gancho poderia ser transformado em sequências de mau gosto, mas Daldry as realizou de forma lírica e sincera.

Basicamente lidando com o tema depressão, As Horas consegue condensar em aproximadamente duas horas uma narrativa difícil e melancólica, mas a edição é eficiente para dar ritmo e manter o espectador atento e curioso para saber qual será o passo seguinte de cada uma das protagonistas. São raros os filmes que conseguem expressar tanto conteúdo praticamente em silêncio, contando na maior parte do tempo com uma trilha sonora apropriada e convidativa à reflexão. Ao final, percebemos que a obra vai além de simplesmente retratar pessoas tristes, entre as quais até a maioria dos coadjuvantes se enquadram, mas também se propõe a mostrar o quanto é difícil tomar uma decisão que pode desestabilizar uma vida toda. Não só o passar das horas pode causar drásticos impactos, mas cada minuto que passa pode fazer toda a diferença. Para quem não quer dispensar seu tempo com bobagens esta é uma opção excelente.

Um comentário:

Luís disse...

Concordo absolutamente que Julianne Moore tenha a interpretação mais interessante do filme e, aliás, acho que tem uma das interpretações mais pungentes da década! Mas de modo algum concordo que as outras personagens não sejam aprofundadas, até porque, como você mesmo disse, suas histórias são apenas cenários para aquilo que é verdadeiramente relevante: as suas sensações ante as situações que vivem.

E não acho que o filme seja sobre a doação da mulher ao homem, mesmo que você tenha querido dizer isso numa intenção mais romântica, no sentido de que é o envolvimento entre duas pessoas. Trata-se de da doação de alguém para si mesmo - não é à toa que todas as personagens se beijam: o beijo o elo que elas têm ou com o passado no qual era felizes ou com as expectativas de felicidade.

Gostei do seu texto, parabéns.

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