Enquanto
em Hollywood o gênero de terror sobrevive aos trancos e barrancos graças aos
filmes sobre seriais killers e refilmagens de sucesso do passado ou de outros
países, é através do sotaque espanhol que nos últimos tempos temos tido a
oportunidade de sentir calafrios de verdade. Rec, por exemplo, agradou a crítica, gerou duas sequências, ganhou
versão americana e cativou um expressivo grupo de fãs, porém, o criador dessa
revolução no cinema não ganhou o mesmo destaque que o nome Guillermo Del Toro.
O cineasta mexicano tornou-se famoso no mundo todo após o estrondoso sucesso do
inovador O Labirinto do Fauno e
bastou seu nome envolvido na produção de O
Orfanato para que certo burburinho fosse gerado e um novo “pequeno grande”
filme surgisse. É uma pena que o mesmo não aconteceu com Os Olhos de Julia (2010),
até porque a distribuidora praticamente ignorou o longa e o lançou em DVD
praticamente em brancas nuvens.
A
trama gira em torno de Julia (Belén Rueda), uma jovem que decide investigar por
conta própria às circunstâncias que levaram sua irmã gêmea Sara a se suicidar,
porém, ela acredita que a tragédia aconteceu por conta de um assassinato. Assim
ela começa a procurar indícios dos últimos atos de sua irmã em vida e quanto
mais se aprofunda nas investigações mais se convence de que ocorreu um crime
envolvendo outra pessoa e que de alguma maneira isso está ligado à doença
degenerativa dos olhos que acabou cegando Sara e que agora já está se
manifestando também em Julia. Um homem misterioso que parece estar perseguindo
esta corajosa mulher traz a tona novas dúvidas sobre o caso. Poderia realmente
Sara ter se suicidado e Julia estar delirando, afinal ninguém se lembra dele em
companhia de sua irmã nos lugares onde ela procura por pistas. O diretor e
roteirista Guillem Morales então traça sua narrativa deixando o espectador em
cima do muro vivenciando a mesma dúvida que Isaac (Lluís Homar), o marido da
protagonista: estaria Julia sofrendo as consequências do choque provocado pela
morte da irmã e do agravamento de sua doença ou realmente existe alguém
seguindo cada passo dessa mulher a fim de evitar que evidências e provas sobre
a morte de Sara sejam descobertas e apontem para uma nova resolução?
O
argumento por si só já garantiria certo destaque ao longa, mas ao receber as
bênçãos de Del Toro como produtor a propaganda positiva seria bem maior, o que
não explica os motivos pelos quais a distribuidora Universal adiou a estreia
nos cinema e por fim preferiu lançar diretamente nas locadoras e sem
estardalhaços um suspense bem acima da média. Bem, é certo que não há indícios
que o filme tenha feito uma carreira de sucesso por onde passou, mas é bom
lembrar que uma simples peça de marketing nos cinemas tratou de fazer conhecido
O Orfanato. A imagem em close no
rosto de uma mulher com uma venda nos olhos e a sombra de uma pessoa atrás dela
seriam o suficientes para aguçar a curiosidade do público, porém, no final das
contas poucos tomaram conhecimento da existência desta obra, mas quem arriscou
assistir certamente não se decepcionou. Claro que a narrativa não é uma coisa
de outro mundo e não está livre de reaproveitar clichês do gênero, mas durante
as quase duas horas de duração somos envolvidos por um clima de suspense
irresistível que investe em bons momentos de tensão e nos poupa de violência
gratuita.
A
atriz Belén Rueda, também protagonista de O
Orfanato, tem uma interpretação forte e convincente e convida o espectador
a viver junto com a sua personagem a angústia e o medo de estar se envolvendo
em uma história cheia de mistérios aonde ela própria chega ao ponto de não
distinguir mais o que é realidade ou imaginação, ainda mais quando ela passa
por terríveis crises de cegueira momentânea. Ela é uma mulher forte e decidida,
chega inclusive a se virar sozinha mesmo após uma operação dos olhos, mas ainda
assim ela não deixa de ter seu lado mais fraco, é quando procura conforto nos
braços do marido, este que até pode deixar no ar a sensação de que tem algo a
ver com a morte de Sara já que ele acredita que a esposa está estressada com
tudo que está passando e inventou a história do assassinato. Apesar de algumas
situações previsíveis e outras que deixam pontas e dúvidas, no geral a trama
surpreende e garante boas reviravoltas. Além de um bom texto e intérpretes, o
longa também se beneficia de sua direção de arte, iluminação e fotografia, tudo
minuciosamente pesquisado para dar à obra um tom azulado e melancólico que cai
como uma luva à produção.
É
interessante que a partir do já citado momento em que a protagonista é
submetida a uma cirurgia e obrigada a ficar com os olhos totalmente vendados, o
espectador é praticamente forçado a se situar na história como um personagem,
um ponto relevante na forma como Morales conduz seu trabalho de câmera e
narrativo. A ousadia é bem vinda e transforma a experiência de assistir Os
Olhos de Julia em algo singular e que poucas vezes tivemos o prazer de
vivenciar. A certa altura a visão da escuridão, ou melhor, as sensações que
Julia tem diante do desconhecido passam a serem as mesmas que o público tem. O
bom e velho efeito de transmitir as imagens como se fossem pela ótica do
personagem aproximam ainda mais o espectador da trama. Em tempos em que o 3D é
a ferramenta preferida dos cineastas para convidar as pessoas a participarem
das ações dos filmes, é muito bom ver que ainda tem gente que consegue fazer
isso usando os recursos básicos para se fazer cinema de qualidade: criatividade
e uma boa história em mãos, o resto é firula. Deem uma chance para mais este
belo trabalho espanhol.
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